Casadas oficialmente desde agosto, duas mulheres conseguiram na Justiça gaúcha alterar a certidão de nascimento da filha, de apenas sete meses, e passaram, juntas, a figurar como mães no documento. O pai é um amigo do casal, que aceitou participar desse arranjo familiar.
Cada vez mais o Judiciário é chamado a analisar novos formatos de famílias, com dois pais ou duas mães – a chamada “multiparentalidade”. São processos envolvendo uniões homoafetivas ou enteados que decidiram adotar o sobrenome do padrasto ou da madrasta.
A Lei de Registros Públicos – nº 6.015, de 1973 – foi alterada em 2009 para permitir expressamente a adoção do sobrenome do padrasto ou da madrasta. Acrescentou-se o parágrafo 8º ao artigo 57. A mudança, porém, só é permitida no primeiro ano após o interessado ter atingido a maioridade, com apresentação de motivos e por decisão judicial. Além disso, os sobrenomes de família devem ser mantidos.
“A certidão de nascimento, que tem função de registrar a realidade civil das pessoas, tem-se adaptado a este novo momento”, diz o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). “A multiparentalidade tornou-se uma realidade jurídica, impulsionada pela compreensão de que paternidade e maternidade são funções exercidas.”
Logo após a alteração da norma, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça analisou a questão, sem ainda levar em consideração a inclusão do artigo 8º na norma. No caso, a autora pedia a retificação de seu registro de nascimento para acrescentar ao seu nome o sobrenome do padrasto, por quem foi criada desde 1973.
Por maioria de votos, os ministros autorizaram a mudança, seguindo voto do relator, ministro Ruy Rosado de Aguiar. “A homenagem que a autora quer prestar à pessoa que se desvelou por ela e ocupou na sua vida a figura do pai ausente, e a conveniência social de se apresentar com o mesmo nome usado pela mãe e pelo marido dela, são a meu juízo razões suficientes para que se permita a alteração requerida”, diz Aguiar.
Com a inclusão do sobrenome do padrasto ou da madrasta, segundo os advogados Rodrigo Barcellos e Eduardo Marostega, do escritório Barcellos Tucunduva Advogados, o autor passa a ter direito a uma possível herança. Por isso, acrescentam, não é incomum no Judiciário demandas de reconhecimento da filiação socioafetiva após a morte do “pai de criação”.
Também há processos envolvendo reproduções assistidas, como o que se refere à menor gaúcha. No caso, o Tribunal de Justiça local (TJ-RS) reformou decisão de primeira instância, que havia negado o pedido por entender que, pelo Código Civil, só poderia haver a indicação de uma mãe e um pai na certidão de nascimento.
Ao analisar o caso no TJ-RS, o relator, juiz convocado José Pedro de Oliveira Eckert, considerou, porém, que não há no ordenamento jurídico regra que proíba a inserção de duas mães e um pai no registro de nascimento. Para ele, “o conceito atual de família, para além do modelo tradicional da família ‘matrimonializada’, entre homem e mulher, deve ser entendido como ‘cláusula aberta’, não se excluindo do conceito – com o devido reconhecimento e proteção do Estado – famílias formadas com base na afetividade”.
De acordo com a advogada Maria Berenice Dias, que representa as mães e o pai da menor gaúcha, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi mais uma vez pioneiro. “O conceito de família está mudando, deixando de ser aquele convencional. Há muitas vantagens para a criança: mais pais, mais alimentos e pessoas amando”, afirma a advogada.
Muito antes do Supremo Tribunal Federal (STF), lembra o relator do caso, “com sua reconhecida característica de vanguarda”, o TJ-RS já entendia ser possível juridicamente o reconhecimento das uniões homoafetivas, “com todos os direitos inerentes, mesmo na ausência de previsão legal”.
Com base na decisão que beneficiou a família gaúcha, foi apresentado recentemente na Justiça de Goiás um pedido de reconhecimento de multiparentalidade, para que conste no registro civil de uma criança o nome de duas mães e do pai biológico. As mulheres, de acordo com a advogada Chyntia Barcellos, representante dos três autores, vivem desde 2004 em união estável e uma delas é a mãe biológica.
A criança nasceu de um projeto comum entre os autores, por meio de inseminação artificial feita em 2009. O homem é amigo de uma delas desde 1995. Ele tinha o desejo de ser pai e, por isso, resolveu doar seu material genético. “Foi estabelecido um acordo verbal entre os três”, diz a advogada.
Juízes também têm autorizado a alteração de certidões de nascimento para que passem a constar dois pais. Uma das decisões foi dada recentemente pela Justiça de Minas Gerais em uma ação de investigação de paternidade, proposta pelo pai biológico.
Nos autos, o pai biológico e a mãe requereram a exclusão da paternidade do ex-companheiro dela. Ao analisar o caso, o juiz Espagner Wallysen Vaz Leite, da comarca de Alvinópolis (MG), porém, acolheu o parecer do Ministério Público, para que constasse no registro civil o nome dos dois pais – o biológico e o afetivo.
“O conceito de paternidade vai muito além do conceito de genitor. O primeiro está relacionado com a socioafetividade. Já o conceito de genitor está ligado à biologia, como sendo o que fornece o material genético para geração de um filho”, afirma o juiz na decisão.
Arthur Rosa – De São Paulo
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